A cena era sempre a mesma. Paty Pimentinha sentada ao lado de Charlie Brown na escola e a voz da professora somente um bla, bla, bla incompreensível e irritante. E em segundos Paty dormia sem nenhum constrangimento, pra desespero de Charlie Brown preocupado com a reação da professora. Esse desenho, Snoopy e Charlie Brown marcou minha infância. Adorava as reflexões existenciais do Lino com Charlie Brown, as consultas psiquiátricas a 5cents da Lucy e a elegância e astúcia do Snoopy e Woodstock. Charles Schulz, criador de Peanuts, era um gênio. Mas a escola não pensava assim pois nunca foi considerado um aluno exemplar. Assim como a prima de Schulz que foi inspiração pra criação da Paty Pimentinha. Não ia bem na escola e dormia, adorava as brincadeiras de menino e odiava as regras dos adultos. Paty apesar de não se dar bem na escola, nunca perdia o bom humor, era corajosa e autoral.
Essa cena da Paty, especialmente, e das crianças na escola ouvindo aquela voz de bla bla bla das professoras, era o que eu também sentia na maioria das vezes em sala de aula. Muito bla,bla,bla, e pouco sentido e diversão. Muito tempo depois, tive a oportunidade de conhecer a casa onde morou e trabalhou Charles Schulz, na Califórnia. E ao mergulhar na história dele e na casa que virou museu, descobri que ele mesmo tinha sérios problemas em se concentrar durante as aulas e de compreender o significado daquilo tudo. Ficar horas e horas ouvindo passivamente aulas expositivas e chatas em um lugar fechado e com apenas 20 min de intervalo – o recreio. Aliás sobre o recreio descobri que nós dois compartilhávamos da mesma opinião: o melhor momento do dia na escola. Onde podemos brincar, criar, jogar, se sujar, cair, experimentar, explorar e arriscar. Podemos conversar, vejam só. Onde as regras dos jogos são ditadas e respeitadas por todos e onde a criatividade flui. E quando o sinal da indústria – quer dizer, da velha escola – soava, o portal se fechava e voltávamos a outro mundo, o da sala de aula. E novamente… muito bla, bla, bla, bla, bla, bla, com raras exceções quando professores com coragem se arriscavam a mudar e a inovar. Aliás desses me lembro até hoje e sou grato.
Mudou muito? E no on-line? Crianças “mutando” professores, dormindo na aula, presentes na chamada, mas ausentes em alma. O problema da falta de boa “ensinagem” em sala de aula é muito antigo, e quando o problema se perpetua por gerações, o ciclo não se quebra. E agora, neste tempo de quarentena, quando o problema é simplesmente transportado para o on-line então? Aí, danou-se.
É preciso muita coragem e ousadia do professor. Aquela ousadia que certamente ele tinha durante o recreio na escola que estudou, quando brincava criativamente. O amor pela profissão já está lá certamente, mas esse amor precisa ser transmitido e compartilhado. O bom professor precisa ser capaz de se comunicar verdadeiramente, cada um do seu jeito, claro, mas aceitando mudanças para estimular a paixão pela aprendizagem dos seus alunos. Essa paixão que está lá, latente dentro deles, só esperando para ser libertada. O bom professor nunca deve se contentar com pouco. Em cumprir tabela, ou passar bla bla bla. Bla, bla, bla pode ser acessado pelo Google a qualquer instante se for necessário. Mas paixão, sentimento, emoção, história, desafio, troca, conversa, suspense, aventura e surpresa só um bom professor pode transmitir. Para inovar, o bom professor precisa inclusive flexibilizar algumas regras. Quantas vezes nas brincadeiras infantis não quebrávamos algumas regras para deixar o jogo mais intenso e divertido. Mais arriscado e envolvente. É isso, mesmo respeitando regras básicas, elas não podem ser desculpa para não inovar. É preciso ter coragem para questioná-las e até modificá-las em sala de aula. Porque, no final das contas, a aula começa, e nesse momento está apenas o professor e seus alunos esperando algo único, surpreendente e novo para acontecer. Ou o bla, bla, bla de sempre que faz a Paty Pimentinha e dezenas de crianças dormirem.